Arras na jurisprudência do STJ
1/3/20259 min read
1) As arras, no sistema do CC/02, são confirmatórias - servindo para afirmar a obrigatoriedade do negócio, como garantia e para eventualmente antecipar pagamento -, salvo previsão do direito de arrependimento contratual, caso em que são penitenciais - servindo para indenizar em caso de desistência.
2) Quanto às arras confirmatórias:
2.1) caso seja normalmente executado o contrato, são restituídas a quem as deu (tendo, assim, funcionado como garantia), salvo se forem do mesmo gênero da prestação principal, hipótese em que são computadas na prestação devida (tendo, assim, funcionado como princípio de pagamento) (CC/02, art. 417); e
2.2) caso haja inexecução do contrato e a parte inocente procure resolvê-lo, ou mesmo exigir a execução do contrato: (a) ficam retidas por aquele que as recebeu, caso ele seja a parte inocente (CC/02, art. 418, I); (b) são devolvidas a quem as deu, caso seja a parte inocente, "mais o equivalente", com atualização monetária, juros e honorários de advogado (CC/02, art. 418, II); e (c) seja num caso, seja noutro, pode a parte inocente pedir indenização suplementar, se provar maior prejuízo, valendo as arras como taxa mínima (CC/02, art. 419).
3) Quanto às arras penitenciais:
3.1) caso seja normalmente executado o contrato, são restituídas a quem as deu (tendo, assim, funcionado como garantia), salvo se forem do mesmo gênero da prestação principal, hipótese em que são computadas na prestação devida (tendo, assim, funcionado como princípio de pagamento) (CC/02, art. 417); e
3.2) caso haja exercício do direito de arrependimento: (a) ficam retidas por quem as recebeu, caso o arrependimento tenha sido exercido por quem as deu; (b) são devolvidas "mais o equivalente" a quem as deu, caso o direito de arrependimento tenha sido exercido por quem as recebeu; e (c) seja num caso, seja noutro, não haverá direito a indenização suplementar (CC/02, art. 420).
4) Eis as questões relativas ao instituto das arras já enfrentadas no STJ:
4.1) A restituição das arras a quem as deu, no caso de inexecução contratual ou arrependimento por quem as recebeu, deve se dar de forma simples ou em dobro (i. e., "mais o equivalente")? Embora, em um julgado, a restituição em dobro pareça ter como pré-requisito tratar-se de relação de consumo (AgInt no REsp n. 1.949.412/PR, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 14/10/2024, DJe de 17/10/2024, julgado em que o art. 418 do CC/02 é aplicado, devido ao caráter consumerista identificado pela Corte, em conjunto com o art. 42 do CDC), há vários julgados reconhecendo o dever de restituição em dobro ("mais o equivalente") sem qualquer exigência de que se trate de relação de consumo. Assim: AgInt no AREsp n. 2.370.650/DF, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 16/10/2023; AgInt no AREsp n. 1.996.020/SC, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 20/6/2022, DJe de 30/6/2022; AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.659.480/RJ, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 30/5/2022, DJe de 24/6/2022; REsp n. 1.927.986/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/6/2021, DJe de 25/6/2021; AgInt no REsp n. 1.648.602/DF, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 18/5/2020, DJe de 21/5/2020;
4.2) As arras no mesmo gênero da prestação principal podem ser retidas em caso de inexecução contratual por quem as deu? Em que pese a previsão expressa do art. 418, I, do CC/02, quanto à possibilidade de retenção das arras, o STJ, para a constelação dos contratos de compra e venda de imóveis, vem decidindo em vários julgados que o sinal pago pelo adquirente, por se tornar princípio de pagamento da prestação principal, deve receber o tratamento que tal prestação principal recebe em caso de rescisão contratual por culpa do adquirente (que deu o sinal), ou seja, deve ser restituído, não podendo ser retido. A restituição, segundo tais julgados, deve se dar de forma simples. São possíveis retenções pelo vendedor, mas não do sinal, e sim a título de cláusula penal. Nesse sentido, entre muitos outros: AgInt no AREsp n. 2.574.937/RJ, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 30/9/2024, DJe de 3/10/2024; AgInt nos EDcl no REsp n. 2.110.844/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024; AgInt no AREsp n. 2.148.949/RJ, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 8/4/2024, DJe de 11/4/2024; AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.439.838/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 8/4/2024, DJe de 11/4/2024; AgInt nos EDcl no REsp n. 1.924.480/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 4/12/2023, DJe de 7/12/2023; AgInt no REsp n. 2.076.914/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 30/10/2023, DJe de 3/11/2023; AgInt no REsp n. 2.059.733/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 16/10/2023; AgInt no AREsp n. 1.983.147/RJ, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 25/9/2023, DJe de 27/9/2023; AgInt no AREsp n. 2.384.748/RJ, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 25/9/2023, DJe de 27/9/2023; AgInt no REsp n. 2.055.437/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 18/9/2023, DJe de 20/9/2023; AgInt no REsp n. 2.020.261/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 14/9/2023; AgInt no REsp n. 1.985.686/RJ, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23/3/2023, DJe de 28/3/2023. Importante registrar que, conquanto esses julgados se refiram à constelação dos contratos de compra e venda de imóveis, alguns formulam a tese, nas ementas, sem sequer fazer essa delimitação, dando a entender que a solução de não retenção das arras aplicar-se-ia sempre que houvesse arras confirmatórias, o que é de todo contrário à previsão do art. 418, I, do CC/02 (assim, por exemplo, a formulação "Nos termos da jurisprudência desta Corte, não é possível a retenção das arras confirmatórias. Precedentes", item 4 da ementa de seguinte julgado: REsp n. 1.936.470/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/10/2021, DJe de 3/11/2021). Importante observar também que, embora tal corrente jurisprudencial pareça ter-se iniciado com referência ao inadimplemento contratual pelo comprador e às arras confirmatórias, há julgados (sempre no universo das compras imobiliárias) estendendo a mesma solução a casos de arrependimento (AgInt no REsp n. 2.136.016/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 24/6/2024, DJe de 26/6/2024; AgInt no REsp n. 2.008.289/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/6/2023, DJe de 14/6/2023), em que pese, nesses casos, tratar-se de arras penitenciais (CC/02, art. 420). Há desses julgados, inclusive, em que se argumenta que as arras seriam confirmatórias e, por isso, não seriam retidas (AgInt no AREsp n. 2.791.235/RJ, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 31/3/2025, DJEN de 3/4/2025; AgInt no AREsp n. 1.928.776/RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 10/10/2022, DJe de 17/10/2022; AgInt no AREsp n. 1.994.278/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 3/10/2022, DJe de 10/10/202), o que nos parece equivocado, pois a própria existência do direito ao arrependimento já retira o caráter confirmatório das arras, que são, nesse cenário, penitenciais na forma do art. 420 do CC/02.
Paralelamente, porém, para a mesma constelação de casos relativos a extinção de contratos de compra e venda de imóveis, há julgados em sentido diametralmente oposto aos anteriormente referidos, neles se decidindo que, em caso de inadimplemento do adquirente, caberia, sim, a retenção das arras confirmatórias pelo vendedor. Assim, por exemplo: AgInt no REsp n. 1.852.758/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 20/5/2024, DJe de 4/6/2024; AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.070.161/DF, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe de 28/11/2017; REsp n. 1.669.002/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/9/2017, DJe de 2/10/2017. Mais remotamente, vide: REsp n. 1.224.921/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/4/2011, DJe de 11/5/2011. As duas correntes jurisprudenciais têm coexistido no STJ, divergindo até mesmo julgados de uma mesma Turma;
4.3) Em caso de inexecução do contrato por quem deu as arras, é possível a quem as recebeu cumular a retenção das arras com a cobrança de cláusula penal em desfavor de quem as deu? O STJ decidiu que, diante do cunho indenizatório da retenção das arras em caso de inadimplemento de quem as deu, a cumulação dessa retenção com a cobrança de cláusula penal compensatória é inadmissível, sob pena de bis in idem (AgInt no AREsp n. 1.942.925/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 26/6/2023, DJe de 30/6/2023; AgInt no REsp n. 1.831.105/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 1/3/2021, DJe de 3/3/2021). Em um julgado, decidiu-se que, havendo previsão cumulativa das arras e da cláusula penal, deve prevalecer a retenção das arras (REsp n. 1.617.652/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/9/2017, DJe de 29/9/2017); noutro julgado, entendeu-se o contrário, i. e., que prevalece a cláusula penal (REsp n. 1.381.652/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 12/8/2014, DJe de 5/9/2014).
4.4) Em caso de direito de retenção de arras por quem as recebeu, é possível redução equitativa do valor a ser retido? O STJ compreende que a possibilidade redução equitativa da cláusula penal, prevista no art. 413 do CC, aplica-se também às arras, possibilitando-se ao juiz reduzir equitativamente o valor a ser retido, sejam as arras confirmatórias ou penitenciais (AgInt no AREsp n. 2.042.338/RJ, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 15/8/2022, DJe de 26/8/2022; AgInt no AREsp n. 246.731/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 23/4/2019, DJe de 22/5/2019; AgInt no AREsp n. 669.670/RJ, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 15/3/2018, DJe de 22/3/2018; AgInt no REsp n. 1.167.766/ES, relator Ministro Raul Araújo, relatora para acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 16/11/2017, DJe de 1/2/2018; REsp n. 1.669.002/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/9/2017, DJe de 2/10/2017). No julgamento do AgInt no AREsp n. 1.186.036/DF (relator Ministro Marco Buzzi, relatora para acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 18/2/2020, DJe de 11/3/2020), decidiu-se que a redução deve se dar em caráter excepcional e observando-se a orientação do art. 413 do CC/02, qual seja, de que se considerem a natureza e a finalidade do negócio (naquele caso, a Corte deu provimento a REsp para reformar acórdão que reduzira o valor de retenção de arras sem observar a referida orientação do art. 413);
4.5) Em ação ajuizada por quem deu as arras, visando à rescisão do contrato por culpa daquele que recebeu as arras, é necessária a formulação de pedido expresso de restituição das arras? O STJ tem decidido no sentido de que, em tais casos, a devolução das arras é consectário lógico da rescisão do contrato, podendo ser determinada mesmo sem pedido expresso, não havendo, em uma tal determinação, julgamento extra petita. Assim, por exemplo: AgInt no AREsp n. 786.232/RJ, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 13/5/2024, DJe de 16/5/2024;
4.6) Existem, no direito brasileiro, as chamadas arras assecuratórias? Segundo um julgado do STJ, as chamadas arras assecuratórias (arras dadas antes mesmo da celebração do contrato, devolvidas caso ele não seja celebrado) "não estão disciplinadas na legislação civil pátria", "embora sejam aceitas doutrinária e jurisprudencialmente" (AgInt no AREsp n. 1.526.985/RJ, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 14/5/2021). Com base nessa conclusão, foi considerado inviável o reconhecimento de afronta aos arts. 418 e 420 do CC/02, alegada em REsp interposto tematizando as arras assecuratórias, pois aqueles dispositivos não regulariam tal modalidade de arras.
Última atualização em 08/04/2025
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